14 de jan. de 2011

Adri Guedes, mãe da Júlia, agora lembrança (By Maristela)

 


Como é que a gente se despede de alguém que vai embora menos de dois meses depois de ter ganho uma filha saudável e linda, filha esta que foi almejada durante décadas? Como é que podemos nos preparar para enfrentar a ruptura radical diante da constatação de que conversas ficaram pela metade, coisas mal-entendidas nunca foram totalmente resolvidas e que, sim, fomos covardes e preguiçosos na nossa acomodação? Adiantaria, então, lamentar o que não se fez? Ou o que se fez de forma torta?
Mais de uma vez, diante da morte de alguém, me indaguei sobre tudo isso sem encontrar resposta decente para esta inquietação, na verdade, inútil. Temos pouco tempo, contando com a sorte (ou não sorte) de uma certa longevidade, para resolver pendências e tentar ser um mínimo que seja feliz – quem sabe uns 70, 80 anos, raramente mais que isso. No entanto, passamos a maior parte deste tempo arrumando encrenca ou, pior, como nos deixando levar pela leniência, levando o dia a dia sem levantar o telefone ou ao menos enviar um mail para manter laços que a cada minuto se tornam mais finos.
Ninguém é santo, porém, e desconfio muito daqueles que vivem sendo impecáveis nas relações com parentes, amigos, colegas. Como se vê, além de tudo, critico até esses que, quem sabe, tentam ser melhores em relação ao que são. Estou e continuarei a estar, ao longo de várias encarnações, muito longe do modelo de alma exemplar. Bem que tento ser menos pior, mas a impaciência, a obediência a um padrão de educação e criação rígidos que vem de casa, e até mesmo a vontade de acertar sempre, tudo me torna, a cada dia, mais imperfeita. E, com isso, gente como eu vai deixando em torno um círculo que se expande, segundo a segundo, de desafetos, desistências, indiferenças.
Adriana Guedes foi minha colega de lides jornalísticas, parceira de bons e maus momentos, amiga. Eu a conheci no Correio do Povo, tem uns dez anos, doze anos. Ela era de riso e choro fáceis, falastrona, impulsiva e faceiríssima. Contadora de longos e detalhados “causos”, tinha expressões verbais muito dela, como “criatuuuuuuura!”, seguida de um risinho debochado.
Quando deixei o Variedades do Correinho para participar do grupo que lançou o jornal O Sul como editora do caderno de “frescuras” (como ainda era chamado o setor de cultura e lazer, um epíteto preconceituoso de décadas dentro do jornalismo que ainda permanece), levei Adriana junto, assim como levei Raquel Sager, outra amiga querida que vejo menos do que quero. E o fiz não só por amizade e confiança, mas por méritos que as duas sempre tiveram no dito “fazer jornalístico”. No caso de Adri, méritos que a tornavam principalmente inquieta, às vezes desconfiada porque as coisas não andavam como ela queria. De modo que, um dia, sem avisar, ela trocou de setor e foi para a Geral. Mais tarde, surpreenderia ainda mais, deixando definitivamente o jornalismo como emprego para dar aulas em Canoas – e eu que nem sabia que ela era professora e havia feito concurso público para lecionar.
Aqueles fatores de que falei lá em cima – preguiça, mal-entendidos, etc – nos afastaram. Adri era intempestiva e, numa das crises de “abstinência de amizade” comigo e outros amigos, ela se definiu, às gargalhadas, como “mulher de fases”, o que, de fato, era – ia da euforia à depressão em minutos. E, de repente, inundava meu mail de mensagens, quase sempre piadas, textos engraçados, impessoalidade total que eu quebrava com uma pergunta básica: “como estás?” E recebia respostas curtas: “bem”.
O que quebrava nosso silêncio era a minha falta de boa visão que fazia com que eu terminasse enviando “torpedos” para Adri sem querer, já que o nome dela era o primeiro da lista no meu celular. Aí, ela telefonava de volta rápida, rindo, e lendo o que havia recebido, e então nos falávamos neste “quase ao vivo”, coisa ligeira, sem novidades.
Ano passado, a grande surpresa de Adri, via mail: “estou grávida”. Sonho antigo, este dela, que tinha Sofia e outro gato que a deixava maluca porque não comia o suficiente. Adriana queria ser mãe de uma menina chamada Júlia. E foi. Ao chá de fraldas, não fui – era dia de meu aniversário, eu estava com a casa cheia. Ela fez de conta que entendeu, mas me cobrou mais tarde.
Na véspera de Adri parir, falamos bastante. Ela estava chateada, ia ter de fazer cesariana. Após muito papo, me pareceu mais serena e contou que a prima, Vera, e a mãe, que ela por tanto tempo procurou e encontrou, prometera ajudar a cuidar de Júlia. Dia seguinte, um torpedo: “Júlia nasceu”. Ao telefone, se mostrou primeiro meio atordoada, mas logo feliz, fez questão de dizer que já estava maquilada passeando pelos corredores do hospital, amamentando, que tudo estava bem, cheia de planos.
Dois dias depois, a mãe da Júlia já  estava enviando aqueles mails impessoais, mas que, aprendi, eram sua ponte com quem ela não convivia mais diretamente. Quando falei que a filha devia ser muito boazinha para a mãe estar naquela folga, ela me devolveu: “Ela é um anjo, só come e dorme”. Mais tarde, me comentou que iria para a praia. No dia seis de janeiro, recebi novamente uma lista de mails-bobagem que deixei na caixa para ver depois. O telefonema do nosso colega e várias vezes parceiro de conversa jogada fora em fins de tarde, Paulo Tavares, veio como uma irrealidade absurda: Adriana Guedes havia morrido. Um mal-súbito, e o coração parou. Fim de todos os sonhos, de um começo de felicidade.
Adri, como a gente a chamava, Adrig, como ela usava na internet, foi embora assim, intempestivamente, como muitas vezes viveu. Nesta sexta, na igreja do Rosário, às seis da tarde, Adriana Guedes está sendo lembrada por quem não conseguiu se despedir dela no cemitério próximo a Capão da Canoa, perto dos pais que a criaram e que foram motivo de tanta preocupação para ela e que a ela sobreviveram. Adri, a que falava pelos cotovelos, ficava de mal e logo ficava de bem sem muita explicação, que ria com a mesma intensidade com que chorava, que adorava dançar e que realizou o sonho de ser mãe da Júlia, é agora mais uma lembrança.  

Um comentário:

Roney Maurício disse...

Não tenho o que comentar, querida; a não ser expressar condolências e constatar, mais uma vez, seu enorme talento para as letras: sua descrição da amiga desaparecida é uma belíssima homenagem...