25 de fev. de 2011

Eu, burra e reaça! (by Maristela)


Minha mãe, Luci, dia desses me disse: “eu queria me mudar prum lugar em que não tivesse tanta lembrança;  aqui já juntei lembrança demais”. Ela mora há quase 60 anos na vila do IAPI e estávamos conversando, depois de um dos nossos almoços de domingo, sobre uma coisa que não existe mais nas grandes cidades: velório em casa. Tudo porque eu havia contado a minha filha sobre este costume que eu mesma, criança, testemunhei:  o ritual de deixar o defunto exposto na sala da sua morada antes de ele seguir para a outra, que muitos acham definitiva.  E com um detalhe: morto tinha de ficar com os pés virados para a janela, para que sua alma pudesse se libertar e não ficar trancada, ali, entre os móveis e os vivos.
Eu jurei para minha mãe que foi ela, sim, que me falou sobre a história da posição adequada pra libertação do espírito dos finados. Ela jurou que não. E foi em meio a esta conversalhada em torno de uma caneca de café na cozinha que ela fez a declaração solene de querer ir embora de sua casa para poder escapar de memória, desta coisa que não desgruda mesmo a gente querendo. Lembrar é necessário. Mas nem sempre é agradável, ao contrário, muitas vezes incomoda se não o próprio dono destas lembranças, o outro, que olha para o passado de seu próximo como se fosse dono do que passou. Uma espécie de apropriação de lembranças alheias.
Esta semana, no Facebook, dois atores que admiro e com quem convivi por anos, enquanto eu escrevia reportagens e comentários teatrais em jornais de Porto Alegre, me postaram avaliações do que eu venho falando criticamente sobre política, ideologia e em especial o PT. Um deles me disse, carinhosamente que, embora divergíssimos na matéria, continuava me considerando uma boa jornalista. O outro, foi fundo: cravou, direto, que preferia quando eu escrevia sobre teatro!
Respondi a ambos que a Maristela que eles conheciam era a crítica de teatro, a profissional que acompanhava seus trabalhos desde o anúncio de uma montagem até a sua realização pública no palco. A Maristela cidadã com seus gostos, suas preferências, suas opiniões além do fazer teatral, esta nunca aparecia e não tinha razão de fazê-lo.  Assim é que não me estranha que tantos, hoje, que me acompanharam em determinado período da minha vida profissional, estranhem o que exponho e se choquem com meus posicionamentos políticos. E interpretem o que falo e sinto com seus filtros ainda limitados a minhas personas digamos “neutras”.
O mais engraçado, nisso tudo, é que nunca fiz uma coisa ou outra para criar uma personagem pública capaz de ser falada, comentada, ganhar notoriedade. Fui e ainda sou uma jornalista da roça: não fiz fama nem grana com meu trabalho, nunca soube pedir aumento e minhas brigas com patrões foram sempre pontuais por questões de autonomia, respeito ao trabalho e coisas do tipo, nunca por cargos ou dinheiro. Fui tantas vezes demitida por minha rebeldia quanto me demiti por estar com cabeça quente e optar por chutar o balde. Burra, com certeza, dirão alguns; e não faltará quem me chame de patronal por isso, ou até de venal por não saber “lutar” por meus direitos .  Reaça, porque não usei os “instrumentos legais” para reverter esta questão. E adjetivos não faltam nem faltarão. Mesmo que eu não tenha a menor importância no chamado “contexto” jornalístico.
Entendo, assim, quando minha mãe diz querer ir embora pra longe para escapar de lembranças, de memórias. Não é apenas o que morreu, o que se foi, que fica pesando quando se permanece muito tempo num mesmo lugar, seja este lugar físico ou emocional: é o que está vivo que cutuca mais! São as memórias que nos cercam , são as palavras de quem partilhou ou partilha de nossa vida que nos atingem mais duramente, e, acima de tudo, é faca amolada esta dificuldade que, em geral temos, de aceitar as divergências, e que alguém com quem dividimos lembranças pensa tão diferente de nós. E isso se chama intolerância.  E isso, de fato, é muito triste.

4 comentários:

Roney Maurício disse...

Bem, não conheço a crítica teatral; aliás, sou um bocado ignorante em matéria de teatro...

Mas o pouco que conheço da jornalista me faz admira-la bastante: respeito aos fatos, rigor analítico e um texto muito bom.

Agora, burro é quem não distingue vida pessoal da profissional; é quem sobrepõe interesses inconfessáveis à (raras) amizades verdadeiras. E "reaça" é quem abre mão de princípios para ficar bem com poderosos de plantão; quem fecha os olhos para o arbítrio; quem faz de conta que não usurpam o estado de direito; quem tolera a perseguição; quem brinca com o totalitarismo...

Ótimo texto, Maristela. Pra variar... Prabéns!

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

Olha,seu senso jornalístico exige profissionalismo e é assim que me parece que você o conduz. Opiniões sempre serão assim: umas contras, outras a favor. O que importa é sua consciência de estar fazendo o melhor, com honestidade e retidão. Sobre lembranças, gosto de guardar só as boas, as ruins nao dou muita bola, não me fiz o muito nas coisas,existe um presente a viver. Parabéns. Beijos

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

CORREÇÃO: ....'NÃO ME FIXO MUITO NAS COISAS...

ninguém disse...

Obrigada pela força, meus amigos. Vocês são especiais.